Em cartaz justamente no momento em que o Brasil adota a tolerância zero para com o álcool no trânsito, O Vôo chega aos cinemas promovendo uma exposição contundente do alcoolismo na área da aviação comercial e uma reflexão sobre a ética, a moral e a condição humana
O Vôo, lançado no início de novembro passado nos EUA, somente agora chega aos cinemas brasileiros e em um momento de exigência da sociedade para leis mais duras em relação às pessoas que dirigem após a ingestão de álcool. A tolerância, agora, é zero, com multas e penas mais duras, após anos e anos em que as estatísticas de morte no trânsito foram comparadas às guerras.
O alcoolismo não é um dos temas preferenciais no cinema. Na verdade, o tema é de difícil abordagem, tanto que, em tanto tempo de janela vendo filmes, apenas três filmes sobre o tema continuam vivos em minha mente: Farrapo Humano (The Lost Weekend, EUA, 1945), de Bily Wilder, com Ray Milland e Jane Wyman, Vício Maldito (Days of Wine and Roses, EUA, 1962), de Blake Edwards, com Jack Lemmom e Lee Remick, que se passa na área da publicidade, e Despedida em Las Vegas (Leaving Las Vegas, EUA, 1995), de Mike Figgis, com Nicolas Cage (que ganhou o Globo de Ouro e o Oscar pelo papel) e Elizabeth Shue. Há pelo menos outros dez ou 12 filmes, mas sem a expressão destes citados.
Apenas para fazer referência ao tema quanto à realidade, pesquisas e estatísticas apontam que o alcoolismo acomete de 10% a 12% da população mundial e cerca de 11,2% dos brasileiros nas 107 maiores cidades do País. No primeiro caso, cerca de 600 milhões de pessoas, segundo pesquisa feita por George E. Vaillant e pesquisadores da Universidade de Harvard, nos EUA. 600 milhões de pessoas. Outra pesquisa aponta que 78% dos jovens brasileiros bebem e 19% já são dependentes. É, portanto, um tema preocupante.
A questão das bebidas alcoólicas não é nova e não deixará, jamais, de ser discutida, com as estatísticas se encarregando disso. A questão é não vê-la de forma hipócrita ou como o fim do mundo. É justamente no equilíbrio entre esses dois pontos que o filme se desenvolve. Ou seja, O Vôo não defende bandeiras e nem vê os alcoólatras como criminosos.
Exposto isso, ao contrário do que pode aparentar, O Vôo não segue a linha da denúncia do alcoolismo, mas a expõe com contundência como um inferno pessoal. John Gatins, autor da fantasia Gigantes de Aço (Real Steel, 2011), concebe aqui, neste novo roteiro, uma história na qual o alcoolismo se localiza numa das áreas mais preocupantes da sociedade, que é a aviação comercial.
Gatins traz o tema à baila de forma engenhosa. Whip Whitaker (Denzel Washington, em atuação memorável), piloto da aviação comercial, em um quarto de hotel, transa com a amante Katerina (Nadine Velasquez), consome bebidas e cocaína. À cena acrescente-se uma ligação da ex-mulher, cobrando a dinheiro para a escola particular do filho.
A primeira exposição de Whip como piloto habilidoso e ousado se registra na sequência em que ele consegue tirar o avião de dentro de uma tempestade. Mas, na sequência, quando o avião apresenta uma série de problemas a 21 mil pés e embica para o chão, ficando a 500 metros do solo, os 200 passageiros e os 6 tripulantes parecem condenados à morte.
Na dramática luta pelo controle da aeronave, ele tem a coragem de inverter o avião e dirigi-lo de cabeça para baixo a fim de estabilizá-lo e, a 500 metros do solo, retorná-lo à posição original e fazer uma aterrissagem forçada em um lugar no campo. Apenas 6 pessoas morrem: quatro passageiros e dois tripulantes.
O que se segue ao desastre é uma exposição de defesa de interesses. A companhia aérea aponta culpa no avião, sindicato dos pilotos no fabricante e, este, assinala para possível erro dos pilotos. Mas, o personagem maior da trama continua sendo Whip, que desgraçadamente, após uma rápida intenção de parar de beber, retoma ao alcoolismo com uma volúpia difícil de ser contida.
Nesse processo de exposição, o roteiro de Gatins foge do maniqueísmo de vilanizar o personagem central e prefere revelar, com sutileza, como as drogas já estão inseridas e trafegam sem problemas no seio da sociedade. Para isso, ele revela a figura excêntrica de Harling Hays (John Goodman), o amigo traficante. Quando ele aparece a trilha sonora toca Sympathy for the Devil, a música dos Rolling Stones.
O acidente que, para a mídia e a sociedade, criou um herói, é o mesmo instrumento que vai revelando, progressivamente, a dramática vida pessoal de Whip Whitaker. A mulher se divorciou dele e o filho o detesta em função do alcoolismo e o irmão e os amigos tentam salvá-lo do inferno. Ele é o único a não participar da campanha de ajuda.
Ao mesmo tempo, as investigações caminham entre dois pontos para definir a origem do acidente: problemas mecânicos na aeronave ou erro humano. Neste quesito, insere-se a descoberta de que o Whip estava sob o efeito de álcool e cocaína. Sem fazer julgamentos dos fatos e dos personagens, O Vôo tem a inteligência de direcionar os acontecimentos para a reflexão do espectador, buscando uma análise nos campos da ética e da moral.
Surge uma questão: caso Whip estivesse sóbrio conseguiria evitar a tragédia? Isso fica como reflexão para o desfecho, o qual tem o brilhantismo de, mesmo sendo previsível, revelar as causas do acidente e o caráter do homem cujo comportamento parece sem jeito.
A ética buscada como reflexão do comportamento humano, não reside apenas em Whip, nas posturas de seus melhores amigos, Charlie Anderson (Bruce Greenwood), que o abriga em sua casa, e Harling Reys, o que está sempre ao seu lado, seja como dialogador seja como fornecedor de drogas, do advogado de defesa, Hugh Lang (Don Cheadle) e, fechando o círculo, da solitária e drogada Nicole (Kelly Reilly). Todos, personagens reais, humanos.
O Vôo trata, assim, dos excessos humanos e de seus interesses pessoais e corporativos, e surpreende ao dotar o enredo de certa complexidade ao inserir, ainda, questões como fé e religião. No contexto, essas questões, enquanto se tornam vivas em vários personagens, por Whip passam com vivo desinteresse. Ao visitar o local do pouso do avião ele pergunta “que Deus faria isso?”
Para ele, somente ele mesmo poderia evitar aquele acidente. Para os investigadores, tratou-se de “uma ação de Deus”, tese compartilhada pelo co-piloto Ken Evans (Brian Geraghty) e a irmã dele, Vicky (Bettany Anne Lind), aparentemente, uma visceral religiosa. Mas, observe na sequência da investigação que, antes de se abrir para a realidade, ele cita a frase “Deus me ajude”.
O diretor Robert Zemeckis merece comentário a parte. Depois de trabalhar em filmes – O Expresso Polar (2004), A Lenda de Beowulf (2007) e O Fantasma de Scrooge (2009) – nos quais os efeitos especiais serviram de experiência para o desenvolvimento da tecnologia no cinema, Zemeckis volta a tratar de personagens humanos.
Zemeckis cria outra impressionante sequência de desastre aéreo – a anterior, em Náufrago (2000), com o avião da Fedex se despedaçando no mar, a qual se rivaliza com a de Presságio (2009), de Alex Proyas, no qual Nicolas Cage presencia a queda de um avião numa estrada.
Grande parte da credibilidade de O Vôo pertence a esse ator extraordinário que é Denzel Washington. Ele constrói um personagem frágil e arrogante em processo de autodestruição e que, também, se destroça em mentir para si mesmo. E, finalizando, destaque-se a perspicácia com a qual o roteirista John Gatins insere a temática da segunda chance e da importância fundamental da família.
Um filme a ser visto com atenção e simpatia, oferece uma boa reflexão sob a condição humana.
Ficha técnica
O VÔO (Flight, EUA, 2012), de Robert Zemeckis, com Denzel Washington, Kelly Reilly, John Goddman e Don Cheadle. Paramount. 138 minutos. 14 anos.
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